sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O Livro da Bruxa - 3º Capítulo

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3º Capítulo - Quadrado

Fui visitá-la novamente na tarde seguinte. Após os cumprimentos, ela pegou um guardanapo de papel e colocou-o sobre a mesinha.
- Hoje gostaria de mostrar-lhe algo importante. Empreste-me sua caneta - pediu.
Entreguei-lhe a caneta, e ela começou a desenhar algumas linhas retas.
Estava decidido a não mais me surpreender com as coisas que ela fizesse ou dissesse, mas não pude deixar de admirar a firmeza de sua mão ao executar o desenho.
Quando terminou, tinha criado a figura de um quadrado com duas diagonais.
- O que significa esse desenho para você? - perguntou, mostrando-me sua obra.
- É algum tipo de teste para avaliar meu perfil psicológico ou posso responder sem medo de estar sendo analisado? - perguntei, tentando ganhar tempo.
- Apenas gostaria de saber o que você vê nele - tranqüilizou-me.
- Aparentemente é um quadrado e suas duas diagonais... Acertei?
Ela esboçou um sorriso, percebendo minha tensão em responder algo inteligente.
- Não existe certo nem errado. É apenas um desenho - disse.
Ela parecia estar se divertindo com minha preocupação.
- Quando você o vê como um quadrado e suas diagonais, que pensamentos vêm à sua mente? - perguntou.
- Quer realmente saber isso? - indaguei, tentando ganhar mais algum tempo.
- Só se você não quiser contar - respondeu, divertindo-se com minhas evasivas.
- Então vamos lá - declarei, decidido. - Esse desenho me faz lembrar um problema de geometria... Fico até angustiado imaginando se a próxima pergunta será sobre o valor de algum ângulo ou o cálculo da distância entre dois pontos... Acho que não são lembranças muito boas do tempo da escola - concluí.
Ficamos alguns segundos em silêncio.
- Não precisa ficar angustiado. Vou salvá-lo dessa situação... A figura pode ser o desenho de um envelope. Consegue vê-lo? - perguntou.
Olhei novamente para o papel.
Como num passe de mágica, o problema de geometria havia desaparecido e lá estava o desenho de um envelope. Nenhuma linha havia mudado, mas milagrosamente a figura era outra.
Não consegui disfarçar e sorri como uma criança deslumbrada. Sempre gostei muito de mágicas e, quando vi o envelope, foi como se tivesse visto um elefante saindo de uma caixa de fósforos.
- Ah, é um envelope. Não pude percebê-lo da primeira vez, mas agora...
- Que tipo de pensamentos este envelope lhe traz? - perguntou, séria.
- Envelope... envelope... - fingi estar procurando algo na memória.
- Não faça cena. Quando você viu o envelope, algo surgiu em sua mente. Afinal, não é a primeira vez que você vê um envelope. Já existiam coisas associadas a ele na sua memória. Você só está ganhando tempo porque não tem certeza se quer me contar, não estou certa? Tinha sido apanhado. Parecia impossível tentar despistá-la.
- Está bem, confesso. Lembrei-me de uma amiga que mora em outro país. Conheci-a numa viagem que fiz há cerca de quinze anos. Trocamos muitas cartas antes dela se casar. Sempre quando vejo um envelope lembro- me dela... Tem certeza de que esta figura não é um teste para revelar minhas características psicológicas?
- Pare de se preocupar em não se expor. Você ainda não percebeu que eu não preciso de nenhum teste psicológico para descobrir o que quero...
Sou uma bruxa. Sei tudo a seu respeito. Inclusive coisas que você mesmo desconhece. Estou apenas lhe mostrando algo para facilitar seu caminho, portanto pare de relutar e aprenda.
Eu não conseguia distingüir quando ela estava falando sério de quando dizia algo apenas para me atiçar. Será que ela acreditava ser realmente uma bruxa? Ou tinha dito aquilo apenas para me provocar? Sua aparência frágil e sua idade avançada ocultavam uma mente brilhante, capaz de manter o controle absoluto em qualquer situação. Ela era o tipo de pessoa que eu gostaria de ter ao meu lado caso entrasse em alguma encrenca.
- Ah, uma bruxa! É a primeira vez que tenho uma bruxa como professora... Pensando bem, acho que já tive algumas professoras bruxas; elas adoravam me deixar para exame no final do ano.
Fiz uma careta, como se tivesse algo azedo na boca. - Entretanto, não acredito que você seja uma daquelas professoras bruxas - continuei. - Talvez seja mais como uma bruxa professora, não é? Espero não ficar de recuperação na sua matéria. Não estou mais em idade de fazer provas nas férias.
- Não se preocupe. Não será esse o caso - comentou.
- Também gostaria que você contasse as coisas a meu respeito que ainda não sei. Economizaria um bom dinheiro de analista - argumentei.
- Vou fazer melhor do que isso: vou mostrar-lhe como descobri-las por si mesmo. Melhor que dar o peixe é contar como se pesca, não é o que diz o ditado? Pegou novamente a folha de papel.
- Vamos brincar um pouco mais com a nossa figura. O que mais você consegue ver neste desenho? - perguntou, retomando o ar professoral.
- Não sei, deixe-me pensar...
Fiquei olhando o desenho durante quase um minuto, mas não conseguia me concentrar. Só via o envelope ou o problema de geometria.
O silêncio era absoluto, e minha ansiedade crescia com o passar do tempo. Ela permanecia serena. Tive a impressão de que, se ficasse mais um ano olhando para a figura, ela esperaria pacientemente. Era como um jogo de xadrez. O próximo movimento era meu, e ela apenas aguardava minha jogada.
Olhei para ela pedindo socorro.
- Não estou conseguindo... Preciso de ajuda - admiti, envergonhado.
- Que tal uma ampulheta? - sugeriu. - Sabe o que é uma ampulheta, não é?
- Claro que sei. É um tipo antigo de relógio feito de vidro no qual se coloca areia. Quando virado de cabeça para baixo, a areia escorre lentamente da parte superior para a inferior - discursei com ar de grande entendido.
Decidi temperar um pouco mais nossa conversa. - Lembro-me de que tive uma quando vivi em Roma na época do Império, mas isso foi numa de minhas outras vidas - ironizei, querendo ver qual seria sua reação.
- É bom saber que você se lembra de outras vidas. Será útil para aproveitar melhor esta - rebateu, desarmando-me.
Fiquei sem ação.
- Agora olhe para a figura e veja se consegue ver a ampulheta - ordenou.
Obedeci e tornei a olhar para o desenho.
Numa fração de segundo a mágica ocorreu novamente. O envelope se transformou numa ampulheta. Podia ver os dois cones de vidro formados pelos triângulos superior e inferior e o suporte de madeira formado pelas linhas laterais. Mais uma vez não consegui conter a expressão de quem vê algo mágico acontecer bem diante dos olhos.
Senti que ela observava divertida meu deslumbramento.
- Que pensamentos a ampulheta lhe traz? - perguntou no exato instante em que algumas imagens surgiam em minha mente.
Deixei as idéias fluírem.
-Vejo um alquimista medieval colocando um frasco no fogo e virando a ampulheta para marcar o tempo. É alta madrugada. Ele está só em seu laboratório e sonha com o dia em que será capaz de produzir o elixir da longa vida e tornar-se imortal.
Fiquei surpreso com as idéias que eu mesmo acabara de expor.
- Parabéns, está ficando poético e soltando um pouco mais a imaginação.
Isso é muito bom. Assim nosso trabalho fica mais divertido, não acha? - disse, sorrindo.
Era uma legítima professora estimulando um aluno pelo acerto.
- Obrigado. Acho que estou começando a pegar o jeito.-Agradeci e fiz uma reverência, como um ator no final da peça.
- Então vamos continuar... O que mais você consegue ver no desenho?
- Tem outra coisa para ser vista aí? - duvidei. - Só depende de você.
O que acha?
Depois de ter recebido os parabéns, não pretendia, sob nenhuma hipótese, passar um atestado de falta de imaginação. Olhei para a desafiadora figura e procurei uma nova abordagem.
Concentrei-me durante algum tempo tentando achar uma solução.
De repente, tive um estalo.
- Ah, já sei... Estou vendo uma porteira. É, sim, é uma porteira - concluí, entusiasmado com minha descoberta.
Ela apenas olhou para mim e sorriu.
- Agora você quer saber o que a porteira me faz lembrar, não é? - continuei.
Ela balançou levemente a cabeça, concordando. - Estou lembrando do sítio do meu tio. Lá havia uma porteira igual a essa. Fui para lá algumas vezes. Quando chegávamos, era preciso descer do carro para abri-la. O sítio foi vendido há muitos anos... Tenho boas recordações daquela época.
As lembranças chegavam velozes, e continuei divagando sem restrições.
- Era muito agradável dormir com o barulho dos grilos e acordar com o canto dos galos. Também havia uma pequena cachoeira perto da casa.
Tomei banho nela algumas vezes. A água era gelada, deliciosa... Mas foi há muito tempo. Não faria isso de novo. Especialmente depois de ter aprendido que é possível contrair esquistossomose em lagos contaminados - finalizei.
Ela levantou uma sobrancelha quando falei sobre a esquistossomose.
- Desta vez você começou com poesia, mas foi trazido rapidamente à realidade pelos seus conhecimentos médicos. Pensar em esquistossomose quebrou todo o encanto... Alguns conhecimentos, às vezes, nos atrapalham - concluiu.
- Mas evitam que a esquistossomose nos pegue - rebati.
- Também impedem que tomemos banhos de cachoeira, não é?
Ela colocou o desenho de lado antes de prosseguir. - Não estou dizendo que devemos nos arriscar de modo insensato, mas com um pouco de bom senso podemos assumir alguns riscos e tornar a vida muito mais interessante...
Ao beijar alguém, você também pode contrair uma doença. Mas qual é a graça de passar a vida sem beijar e ser beijado?
- Tem razão. Como disse um poeta, “O porto é o lugar mais seguro para um barco, mas ele não foi feito para ficar lá; seu destino é navegar” - declamei.
Ela bateu palmas delicadamente.
- Parece que retomei a inspiração poética, não é? - brinquei.
- A palavra poeta vem do grego e significa aquele que faz. Comparar pessoas a barcos ou a vida a uma pintura é típico da poesia. Ela permite estabelecer semelhanças entre coisas diversas... também possibilita ver a mesma coisa por diferentes perspectivas.
Pegou o papel e mostrou-me o desenho.
- Brincar com esta figura é uma forma de exercitar esta capacidade.
Se soubermos utilizá-la, poderemos perceber as maravilhas ocultas em nossa rotina e modificarmos nossas vidas.
Uma nota de melancolia insinuou-se em sua voz, e ela começou a falar como se estivesse conversando consigo mesma.
- Infelizmente este nosso dom é pouco utilizado. Essa é a principal causa pela qual as pessoas atrofiam a capacidade de se maravilhar com o mundo. Tornam-se angustiadas e insatisfeitas. Não conseguem ver os tesouros que estão todo o tempo bem diante de seus próprios olhos - suspirou.
De repente, como se tivesse sido apanhada distraída durante o trabalho, retomou a disposição anterior.
- Que mais você consegue ver aqui? - disse, indicando o desenho.
- Ainda há outras coisas nesta figura? - perguntei incrédulo.
Ela colocou o papel de lado.
- Tem razão, não vamos exagerar. Você já tem coisas suficientes para pensar por hoje. É hora de descansarmos. Amanhã é sábado, você virá me visitar?
- Amanhã é o meu dia de folga. Outro médico está encarregado de visitá-la. Entretanto, se você permitir, virei apenas para conversarmos. Posso chegar no início da noite. Aceita? - propus.
- Será um prazer, mas devo avisá-lo de que o horário de visitas deste hospital é até as dezessete horas. Se você chegar no início da noite, não poderá entrar - disse, num tom maroto.
- Vou revelar um segredinho. Tenho isso para mostrar na portaria - sussurrei, apontando para meu crachá. - Eles pensarão que sou médico e me deixarão entrar mesmo fora do horário - brinquei.
- Ah, muito bom.... Só espero não despertar ciúme em nenhuma esposa ou namorada pelo fato de você estar vindo me visitar no sábado à noite.
- Quanto a isso, pode ficar tranqüila. Estou absolutamente solteiro e não tenho nenhum outro compromisso marcado.
Era verdade. Eu tinha terminado havia pouco tempo um relacionamento de vários anos e estava tentando me manter longe dos compromissos mais sérios. Tinha passado minhas últimas noites de sábado comendo pizza e ouvindo músicas sozinho em meu apartamento.

  • Links para os Capítulos anteriores:
1º Capítulo
2º Capitulo

Um comentário:

Rosana disse...

Maravilhoso! Estou gostando muito do livro.
Abraços,