terça-feira, 16 de novembro de 2010

O Livro da Bruxa - 14º Capítulo

Natureza

O almoço estava excelente. Comemos a salada, acompanhada pelo delicioso vinho branco. Devo confessar que ela estava certa com relação à quantidade de comida, pois a salada foi suficiente para saciar meu apetite.
- O que você deseja de sobremesa? - perguntei.
- Sorvete de chocolate. Ah, peça ao garçom para trazer uma porção bem generosa. Quero cometer um exagero consciente - disse, com ar maroto.
Pedi o sorvete de chocolate e uma salada de frutas para mim.
- O que mais me impressiona nas suas bruxarias é você ter sempre um exemplo acontecendo bem diante dos meus olhos - comentei.
Ela me olhou sem dizer nada.
- Quando aquele carro velho entrou na nossa frente e o caminhão bloqueou a passagem, você me apresentou o anjo da guarda. Em seguida, encontrou crianças pulando corda para me falar sobre o ritmo do universo.
- Podem ter sido coincidências - observou com ironia.
Fiz uma careta de incredulidade, e ela sorriu.
- Quando entramos na estrada e achei que teríamos muito tráfego, você me mostrou como navegar entre os grupos de carros e ter a estrada mais vazia. Aqui no restaurante você achou a lagosta para me falar sobre
nossas armaduras. Antes disso, ao ver as crianças construindo castelos de areia, comentou sobre a seriedade e o prazer das brincadeiras infantis. Depois, usou o exemplo do ventilador para falar sobre situações que nos forçam ao exagero. Sem contar o desenho do quadrado e suas diagonais.
Fiz uma pausa antes de perguntar.
- Gostaria de saber de onde é que você tira tudo isso?
Ela apoiou os braços sobre a mesa e inclinou-se para a frente, juntando as mãos.
- Você já ouviu falar de Paracelsus?
- Já li sobre ele em livros de história da medicina. Sei que foi um médico suíço do século XVI e um dos precursores da moderna farmacologia.
Ele também escreveu vários textos sobre alquimia - discursei.
- Num dos livros escritos por Paracelsus, há uma frase muito interessante: “abandonei o estudo pelos livros dos homens e passei a ler o livro do mundo”. Sabe o que isso significa? - perguntou.
- Que ele decidiu descobrir as coisas por si mesmo?
- Um pouco mais que isso. Ele decidiu descobrir as coisas por si mesmo, observando a natureza - completou.
O garçom trouxe nossas sobremesas. O sorvete de chocolate era enorme, e ela fez uma expressão de criança preparando-se para fazer arte.
- Você quer saber de onde tiro as coisas? Do mesmo lugar que Paracelsus... do livro do mundo - arrematou.
- O livro do mundo deve estar escrito numa linguagem codificada para mim. Sinto-me um completo analfabeto - choraminguei.
- É porque você não está olhando pela perspectiva adequada. Muitas vezes achamos que Deus não quer falar conosco, mas isso não é verdade.
Ele fala conosco o tempo todo, nós é que nunca estamos prestando atenção.
- Como se faz para ouvi-lo?
- A natureza é a linguagem de Deus. Aprenda a ouvi-la, e ela lhe dirá tudo o que você quer saber. Tudo está o tempo todo bem diante dos nossos olhos.
- Vou precisar da sua ajuda para começar a aprendê-la.
- Estou fazendo isso desde que nos conhecemos - afirmou.
- Então continue, estou adorando. Só não sei quanto tempo levarei
para tornar-me alfabetizado - brinquei.
Ela começou a comer seu sorvete com grande prazer. Decidi não atrapalhar sua diversão e ataquei minha salada de frutas. Havia pedaços de morango, maçã, laranja, banana, abacaxi e mamão cortados em pequenos cubos com muito capricho.
De repente, senti uma pequena semente na boca. Com certeza tinha escapado no momento da preparação. Era uma semente de laranja. Coloquei-a na borda do meu prato.
- Veja isso - disse a bruxa, apontando para a semente.
- É, o cozinheiro precisa tomar mais cuidado. Caprichou tanto, mas deixou passar essa semente de laranja - critiquei.
- Se você quer interpretar assim, não há problema... Mas estou vendo a natureza enviando-lhe uma mensagem - declarou.
Permaneci em silêncio, aguardando a explicação.
- Já pensou no trabalho que deu preparar sua sobremesa? - ela perguntou.
Pensei um pouco antes de responder.
- Imagino que foi preciso escolher as frutas, depois lavá-las, cortá-las em pedaços pequenos e colocá-las neste pote. Até que não é tanto trabalho assim - comentei.
- Você se esqueceu de mencionar a parte mais importante - disse.
Pegou com cuidado a semente que eu havia desprezado.
- Considere apenas a laranja. Uma semente igual a essa precisou chegar num terreno fértil. Então, milagrosamente começou a brotar e deu origem à planta. Ela criou raízes, nutriu-se do solo e cresceu. Enfrentou dias, noites, invernos e verões até desenvolver as flores, seus órgãos sexuais.
Neste ponto, ela fez uma pausa e olhou com o canto dos olhos para a margarida que eu lhe tinha oferecido. Fiz uma expressão de arrependimento, e ela divertiu-se ainda mais.
-A flor da laranjeira foi polinizada por um inseto ou um pássaro e desenvolveu-se até produzir a laranja que você está comendo - concluiu, indicando minha salada de frutas.
Pressenti que ela iria continuar e permaneci ouvindo.
- A mesma coisa aconteceu com todas as outras frutas que estão aí na sua salada. E sabe o que é mais bonito em tudo isso? A laranja trouxe dentro de si uma nova semente. Basta colocá-la num terreno fértil, e o ciclo será reiniciado. Oculta na sua sobremesa está sua própria receita. Deus é um grande cozinheiro, não concorda? - finalizou.
- Nunca mais vou encarar uma semente como um inconveniente - respondi.
- Cada vez que você olhar para a natureza pela perspectiva adequada, ela lhe revelará um segredo. Assista mais vezes ao nascer do sol. Observe as árvores, os pássaros, as pessoas, os insetos, o vento, as estações
do ano, a chuva, as montanhas, os desertos, o céu, o mar e as cidades.
Encare tudo como uma sinfonia de Deus, e tenho certeza de que você a ouvirá.
Ela fez uma pausa e olhou-me bem nos olhos.
- E, quando estiver ouvindo, saberá qual é o seu instrumento e como fazer para harmonizar-se com essa música. Aí terminarão suas angústias e medos, e você estará vivendo plenamente.
Permaneci pensativo durante alguns instantes.
- Estou impressionado. Você é uma pessoa muito especial - declarei.
- Todos somos especiais. O problema é que muitos de nós criam limites inexistentes e deixam de crescer. São sementes de grandes árvores plantadas em pequenos vasos... E nenhuma planta consegue crescer mais do que o vaso que a contém. Desenvolver-se implica em liberdade e responsabilidade.
- Preciso de um tempo para pensar sobre tudo isso - afirmei.
- Você terá o tempo de terminarmos nossas sobremesas. Em seguida, quero passear um pouco mais pela praia - sentenciou.
- Está bem, mas antes de sairmos gostaria de tomar um café. Você também quer um?
- Só se for com chantilly. Vou cometer mais um exagero consciente.
- Então será com bastante chantilly - concordei.

2 comentários:

Paty disse...

Olá Luciana,,, a paz de Jesus.

Visitei o seu site e achei muito cheio de paz...

Luciana Vieira disse...

Paty, Espero a sua visita mais vezes!
Um beijo!